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sexta-feira, abril 30, 2004

FADO E COMPANHIA LIMITADA 

Ontem andei pelas casas de fado à procura de elenco para um espectáculo de fado que farei em breve no Teatro Villaret.
Não está fácil reunir um elenco variado, apelativo e de qualidade... alguém aí tem alguma sugestão?
Cheguei a casa às 4 da manhã sem ter avançado grande coisa.
hoje jantarei com o ma-ra-vi-lho-so Pedro Jóia que me dá o privilégio de ser meu amigo e com quem fiz um disco há uns meses chamado Jacarandá que juntou a minha poesia à música dele e às vozes de alguns brasileiros - O Ney Matogrosso, a Elba Ramalho, a Mônica Salmaso, a Zélia Duncan, o Zeca Baleiro, a Ná Ozzetti, o Pedro Luis e a Parede e a Daniela Mercury. Nesse disco escrevi uma das letras que eu mais gosto e que o Ney gravou primorosamente. Chama-se "Duas nuvens" e é assim:

DUAS NUVENS

Tristes são os olhos de quem chora
um amor que pôs o pé na estrada

tentam convencer quem vai em bora
que a estrada de ir vai dar em nada

luz que incendeia
corpos confusos
e um coração que anda à boleia
de desejos, mistérios e búzios

lágrimas que surgem na aurora
cristais de geada no lençol

gotas de um orvalho que evapora
na preguiça de um raio de sol

luz que clareia
corpos confusos
e um coração que anda à boleia
de desejos, mistérios e búzios

olhos - duas nuvens a voar
sobre os céus
talvez sejam os teus ou os meus
vão na chuva, vão no vento, vão no rio, vão no mar

quando escutares o barulho
das ondas ao sabor da minha mágoa

sou eu que na pressa de um mergulho
fui me confundindo com a água

luz que prateia
corpos difusos
e um coração que anda à boleia
de desejos, mistérios e búzios

olha - duas nuvens a voar
sobre o céu
talvez sejas tu ou seja eu
eu que sou chuva, que sou vento, que sou rio, que sou mar
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quinta-feira, abril 29, 2004

NÃO HÁ DERROTA QUE DERROTE QUEM NASCEU PRA VENCER 

peço desculpa pela minha falta de ontem mas foi por uma boa causa. Fui ao Porto tratar de algumas formalidades para a edição do livro que compila as letras que tenho escrito para um monte de gente e aproveitei para ver no Rivoli a maravilhosa Elza Soares que não actuava em portugal há muitos anos e que do alto da sua sabedoria de sambista sem geometria (o samba não tem fita métrica) pôs todos quantos a foram escutar, e na sua maior parte o público não sabia o que ia ouvir, de cócoras. à segunda música, aquela a quem louis armstrong chamou "my daughter" e a bbc considerou a cantora do milénio já tinha uma plateia inteira aos gritos e rendida a uma voz que dispensa microfones, dispensa regras e dispensa quaisquer qualificações. É o canto mais livre que jamais ouvi e o mais extenso. tantas vezes acompanhei as suas apresentações, em londres, em são paulo, no rio de janeiro onde, numa sessão de fotografias que fizémos juntos na casa que ela tem no leme, foram obtidas as melhores fotografias que jamais me foram tiradas e isto porque a energia daquela mulher é absolutamente contagiante. uma mulher que nasceu na favela, viu um filho morrer à fome, foi exilada do brasil por ter casado com o famoso jogador de futebol garrincha de quem teve um filho e viu o seu filho garrinchinha morrer num desastre de automóvel aos sete anos e cujo lema de vida foi e será sempre "Não há derrota que derrote quem nasceu pra vencer". Ave elza! deus te abençoe por muitos anos e que todos os que lerem isto tenham pelo menos a curiosidade de saber quem é esta black woman que fez do samba uma linguagem universal e como diz a canção " quem não gosta de samba bom sujeito não é é ruim da cabeça ou doente do pé".
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domingo, abril 25, 2004

Ontem fui ao teatro taborda ver o perverso espectáculo "O nosso hóspede" (Entertaining Mr. Sloane) do Joe Orton e ocorre-me falar da protagonista - a actriz Lia Gama - que, no meu entender, é do melhor que este país tem. Raramente a tinha visto num registo cómico (creio que só na fabulosa velha de "Perdidos em yonkers") mas, é uma actriz onde se abrem todas as possibilidades: canta bem (e então se for Kurt Weill!!!) faz bem cinema (a cena do "António um rapaz de Lisboa" em que ela encontra o filho drogado na casa de banho do quarto de hotel em sevilha e de súbito escuta um pasodoble a tocar na rua é um estrondo!, faz bem Beckett, Fassbinder, Tenessee Williams, Lorca, eu sei lá. Faz-me falta a Lia nos palcos. Há uns dois anos, tive o privilégio de que ela gravasse uma canção com letra minha e música da Pilar Homem de Melo. A canção chama-se "Boca escarlate" e é assim:

BOCA ESCARLATE

Rímel, batôn
pincéis e traços
qual é o tom
a cor dos abraços?

um pouco de blush
um pouco demais
e talvez eu ache
a cor dos meus ais

alguém me socorra
da minha boca escarlate
por ela talvez morra
talvez mate
inúteis as fugas
de eye-liner na mão
não tapam as rugas
do meu coração

ouro, rubi
talvez ninguém note
na cor que escondi
sob o meu decote

e quando no escuro
sozinha me vejo
procuro, procuro
procuro a cor de um beijo

alguém me socorra
da minha boca escarlate
por ela talvez morra
talvez mate
inúteis as fugas
de eye-liner na mão
não tapam as rugas
do meu coração
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Como dei início a este blog numa data tão especial para todos nós e já que o meu ofício é escrever, coloco aqui o texto que me foi encomendado para o Jornal de Letras sobre o 25 de Abril:


DEMOCRACIA, CÉRÉLAC E PSICOTERAPIA


Algumas pessoas poderão vacilar à famosa pergunta: “onde é que você estava no 25 de Abril?”. Eu não! Estava na cozinha. É a única memória que guardo desse dia. Como a cozinha dava para o fundo da casa, onde longos páteos abrigaram o meu desajeitado talento para a bola, ali ficámos: eu, os meus irmãos e a Hermínia, senhora de grande corpo e grandes afectos que trabalhava lá em casa desde que eu tinha seis meses e que nos meus longos silêncios de criança que geraram o escritor que eu viria a ser, se esquecia até de me dar a Cérélac que eu adorava.
Mais tarde, não sei se meses, se anos, rebentou uma bomba na Embaixada da Argentina que ficava mesmo defronte da nossa casa. Lembro-me que os vidros das janelas ficaram em estilhaços. Lembro-me de ter acordado desse sono levíssimo que me acompanha desde sempre. Não me lembro se senti medo. Não me lembro se senti alguma coisa. A única emoção que lembro relacionada com a revolução dos cravos, linda flor cujo perfume me encanta, vi-a estampada no rosto de uma antiga amiga dos meus pais, escritora, mulher emancipada, lutadora anti-regime, várias vezes presa pela pide que, ao escutar o vazio das palavras de um alto dirigente político, muito pouco tempo depois daquela data, disse, numa desilusão que ainda hoje me persegue: “Dei eu a minha vida toda por esta merda!”
Não sei o que ganhámos ou o que perdemos com o 25 de Abril, como não sei o que ganhámos ou perdemos com o 5 de Outubro. Certamente ganhámos menos do que uns nos querem fazer crer, por certo ganhámos mais do que escutamos nas vozes de outros. Talvez eu escrever este texto seja uma das vitórias de Abril. Imagino que, para quem a viveu, a censura deva ter sido um pesadelo horrível. Como imagino que a escravatura tenha sido um horror que, aos meus olhos, é difícl de conceber.
Nenhuma dessas foi a minha luta. Eu não estava cá para as viver e não acredito nas pessoas que, com a minha idade, discursam como se tivessem 48 anos de fascismo sobre os ombros. Interessa-me sim descobrir as formas de censura vigentes no mundo do século XXI ( e elas são tantas!). Interessa-me encontrar soluções para um país que, trinta anos depois, ainda não conseguiu encontrar forma de possibilitar uma vida digna aos seus artistas. Interessa-me ir em busca das memórias que se perdem no entusiasmo de todos os momentos conturbados.
Ainda pude testemunhar as grandes manifestações do início dos anos oitenta. As grandes aglomerações de gente na Alameda, no Pavilhão dos Desportos, nos Restauradores, da AD à APU todas as manifestações eram vitais, apaixonadas, uterinas. Quando me tornei adolescente e procurei isso que anos antes tinha visto, já todas as ideologias estavam moribundas e com elas toda a esperança.
Sou de uma geração de gente a quem foram negadas as grandes convicções. Assistimos a intelectuais, políticos, artistas que tanto clamaram contra a nossa ditadura, a pactuarem, por exemplo, com a ditadura de Fidel, ditadura que há pouco mais de um ano encerrou na prisão Raul Rivero e outros 75 opositores pacíficos à ditadura sem qualquer possibilidade de controlo por parte da ONU.
Assistimos à falência das ideologias políticas, ao anquilosamento das religiões... e tudo sob um ténue véu de desresponsabilização que sempre e sempre e sempre radica na ditadura.
O discurso da geração que ficou presa ao 25 de Abril lembra-me os filhos que saem de casa e durante toda a vida culpam o comportamento dos pais por todos os insucessos. Meus amigos, isso trata-se com psicoterapia. Conheço uns quantos psicoterapeutas com bons resultados junto dos seus pacientes. Esses resultados levam anos a alcançar mas... para que nos libertemos de vez do fantasma da ditadura, talvez... talvez o que a democracia precise é de um bom psicoterapeuta que lhe cure as feridas de um passado recente e as glórias de um passado antigo. Umas e outras impedem esta democracia que todos amamos de abrir os braços ao futuro.


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bom dia!
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